terça-feira, 30 de outubro de 2012

DEPOIMENTO DE UM POETA ANÔNIMO


UM POETA DESPOJADO: ZÉ ORESTES

Filho de peixe, peixinho é, já nos ensina o adágio popular. Apaixonado por esta nossa cidade de Cruz, Zé Orestes, radicado em São Paulo, desde quando pra lá, a exemplo de tantos nordestinos, seguiu em busca de melhores tempos, e conseguiu-o. 

Teimando contra os reveses próprios de uma terra que não deixa de ser a cada dia estranha pela absorção de tantas raças e culturas, bacharelou-se em direito e prestou concurso público logrando aprovação. Hoje, depois de tantos anos, aguarda ansioso os louros da aposentadoria... merecida aposentadoria.

Filho do Mestre Zeca Muniz, maior expoente destas bandas de cá na arte da expressão maior da alma, a poesia, Zé Orestes é o que se pode definir como um poeta sui generis: ele tem o dom de dar nós nas palavras que enlaçam o leitor. A forma despojada com que escreve somente se compara ao seu estilo de vida. Aberto. Receptivo. Simples...

Indubitavelmente, escrever é um estado de espírito, e poucos são os que conheço que tem este estado tão elevado e ao mesmo tempo tão humilde. Certamente deve ser por isso que de seu manancial inesgotável brota tantas maravilhas literárias. O homem está sempre de bem com o mundo. 

Ainda não mais do que há um mês, no mercado público daqui de Cruz, vi-o com aquele seu estereótipo característico: chinelão, calças largas, chapéu e blusa de seu time do coração, o Santos, e a mão sempre estendida para um forte aperto que é seguido de um afetuoso abraço. Boa gente este meu amigo, gente muito boa.

Diz-se dele, os que têm o privilégio de orbitar-lhe, sim, pois tão grande pessoa e tal qual um sol que obedece as leis físicas dos astros, tem gravidade e captura para seu raio de atração corpos celestes menores que beneficiam-se de sua luz perenemente irradiada. 

Eu fui capitado por ele, como anteriormente fui capitado por seu velho pai, uma supernova que já se extinguiu e que eternamente expande pelo universo sua radiação através da musicalidade de seus poemas. Assim também foi com Zé Orestes e sua poesia. A força de atração de sua alma transmutada nos seus versos soltos aprisionou-me na eternidade das rimas e nas costuras das palavras que somente ele sabe como fazê-las; e, como se no vácuo estivesse, o tempo não é percebido, somente a insustentabilidade da leveza de seu espírito de poeta... grande poeta.

A ti meu amigo, quem dera tivesse eu o mesmo dom que te é inato, e pudesse expor em texto todo o meu apreço e admiração não somente pelo que escreves, mas pelo exemplo de vida que verdadeiramente és. Como não sou íntimo das palavras, te exponho da forma que sei e que tanto cultivo como valor inestimável e que tem a linguagem universal: a AMIZADE que te nutro e imensamente me honra.


RESPOSTA:

Pôxa vida!!!!!!!!!!! O que poderia eu, me atrever a dizer, depois dessa magna página, dessa cachoeira de tão doces palavras? Só mesmo um grande poeta poderia discorrer com tanta fluência e zêlo. Puseste-me em estado de emoção com tanta lisonja e afeto. Por certo, não te identificastes, pela modéstia. És um sábio de letras livres e suaves que já te consagram um grande poeta da nossa cidade de Cruz. Admiro-te no estilo e na generosidade!!!

sábado, 20 de outubro de 2012

DONA RITA

Dona Rita tão bonita,
Tão faceira tão amiga,
Olhando não há quem diga,
Que não era da família.
Era a mãe e era a filha,
Do Velho Zeca Muniz,
Na hora de ser feliz,
A Rita caiu doente.
Lutou com unhas e dentes,
Até perder os cabelos,
A doença fez novelos,
Amarrou suas passadas.
Agora já bem cansada,
Não resistiu a batalha,
E a vida numa falha,
Lhe levou antes da hora.
Dona Rita vai embora,
Deixando muita saudade,
Cativou a amizade,
De gente que não é sua.
Foi de mudança pra lua,
Dar de comer às estrelas!!!


domingo, 26 de agosto de 2012

O MENINO E A RAPOSA

Prantá roça de criá calo, espinhaço inté o chão, pissuir as criação, a dispois raposa fazê banquete? Uma ova! Era seu pai praguejando enquanto oleava a velha espingarda de carregar pela boca. Nunca vira seu pai tão enfezado. Parecia mordido de raposa. Mergulhou a caneca no pote, lavou o rosto e dirigiu-se ainda sonolento para a mesa do café. - Bença mãe. - Deus te Bençoe! Teu pai tá espritado de raiva. O galinheiro tá que é pena. As pegada é de raposa. - Eita, será que cumeu a Maricota? Ainda onte contei os bicho. Pra mais de cem. Fora os pinto. Lembrou-se de Maricota, ressuscitada debaixo da cuia, muito fraquinha, salva no pirão de leite com farinha. Imaginou seu pescoço franzino de frangota, entre os dentes afiados da raposa. E se ela tivesse dormido trepada? Raposa não sobe no pé de pau. Já cruzava o terreiro em direção ao galinheiro, quando seu pai lhe interrompe o pensamento. Vá num pé e vorte nouto, na budega do seu Leocádio comprá as munição. Na minha sombra raposa num faiz arrancho. A raposa estava encalacrada. Tinha pena do bicho bruto que age por instinto, apenas pra matar a fome. Se pudesse deixaria um aviso pra ela no galinheiro. Um frasco de chumbo, espoleta, pólvora pra dez carrego. - Seu Leocádio, tem chumbo que num é chumbo? Que bate mais num fura? Seu Leocádio lambeu o papel, enrolou o pé duro..... - Oia seu minino, já escuitei falá num tá de festim, mai eu memo nunca vi não. Diga seu pai que esse eu num tenho não. - Não seu Leocádio, ele nem queria desse não. Tinha que fazer alguma coisa pra salvar a raposa daquela emboscada. Pediu a seu pai pra lhe deixar fazer o carrego, assim colocaria só bucha e pólvora, tiro de festim. Pedido negado. Bota porva, bota bucha, bota chumbo e outa bucha. Acho qué assim. Nem me alembro a derradera vez que atirei num bicho. Acho que foi num quexada que tava acabano cum miaral. Ô foi na pintada? A pobre raposa estava mesmo com as horas contadas. Foi zinindo pra escola, se aconselhar com sua amiga Chiquinha. Só ela e mais ninguém na sua idade, tinha tutano de homem. Chiquinha era a brigona da escola. Todo menino tinha medo dela. Mas, pra sua sorte, era sua amiga e confidente. - Chiquinha, meu pai tá armado até os dente. - Questão de terra? - Raposa mesmo. Após confabularem durante toda a aula, Chiquinha lhe empresta sua arapuca gigante, que logo foi armada na trilha das pegadas. Agora era só rezar pra raposa passar por ali naquela noite. E mais um pequeno detalhe, que foi lembrado pelo menino. - Chiquinha, arapuca sem galinha não pega raposa. - Será que ela se importa de comer galinha lá de casa? Os dois rolaram na terra numa grande gargalhada! A ansiedade não lhe deixou dormir naquela noite. Ao chegar na armadilha de manhã cedinho, Chiquinha, mais astuta que a raposa, lá estava acocorada contemplando sua presa. Fizeram uma grande gaiola de varas amarradas de cipó. Era a nova casa da raposa, que para tanto não foi consultada. Os dias foram passando e o segredo dos dois aumentando. Já passava de dez galinhas, suas cumplicidades. Já estava ficando perigosa a brincadeira. Um tiro pela culatra, com perdão do trocadilho, lhes custaria uma bela surra de cipó. Numa noite chuvosa e fria, o homem volta da tocaia todo molhado, tal qual a raposa na gaiola. O menino que ainda não dormira, preocupado com o desfecho da sua trama, escuta a conversa dos pais. - Tenho cá cumigo que ela me espia inté eu sair. Animá cum fome nem bebe água, amoitado. Tu tá contano essis bicho? Namemente tão amiudano. - Tu sabe que me atrapaio na conta, quando elas se mexe. - Vai vê que a bicha inté já se mudô da redondeza, e eu aqui me fazendo de besta. E esse minino que num me ajuda mais em nada, agora é unha e carne cum a menina do cumpade Chico. Passados dias, seu pai deu a raposa por morta, após Chiquinha dar falsa notícia de uma nuvem de urubu lá pelas suas terras. Meu pai não deu falta de nenhum bicho, só pode ser ela, conclui a menina. A raposa ainda comeu muitas galinhas. De sorte, seu pai não sabia contar. Adotada com nome de Maricota, a raposa virou animal de estimação. Tempos depois, na escola..... - Meu pai vai mudar de criação, diz que vai criar porco. Bicho maior. - Tem arapuca pra onça? Pergunta Chiquinha com um sorriso maroto!

sábado, 21 de julho de 2012

A LENDA VAIDOSA

Diz a Lenda, que uma Lenda muito vaidosa, inconformada com o descaso do povo com sua Lenda, pois, vivendo à beira do esquecimento, resolveu certo dia abandonar sua Lenda e, numa atitude Lendária, criar uma Lenda que jamais fosse esquecida. A Lenda seria de outro planeta. Lenda de causar arrepio na mais Lendária das Lendas. Foi um reboliço Lendário. Todas as Lendas se revoltaram enciumadas; ora mais, o que deu nessa Lenda? Andou tendo pesadelos? - Precisamos renovar as Lendas. Estamos todas envelhecidas e fora da mídia, disse a Lenda rebelde. - Não se cria uma Lenda assim, aponta-lhe o dedo, uma Lenda autoritária. - E você sabe como começa uma Lenda? Perguntou-lhe a Lenda que acabara de criar a Lenda; - Nunca se sabe ao certo, Lenda é Lenda. Quando me entendi por Lenda eu já era Lenda, retrucou a Lenda mais conservadora. O Lendário museu ficou em polvorosa. Lendas que ha séculos não tiravam remela, já acordavam perguntando: o que foi, o que foi? Foi marcado então, diz a Lenda, um Lendário julgamento interrogatório, em desfavor da relicária Lenda. Todas as Lendas se reuniram no Lendário calabouço, com suas perucas de bobs e seus guarda-pós mofados. Foi uma catinga Lendária jamais vista ou sentida, até pela mais Lendária das Lendas. A Lenda-Mor, já moribunda, então eleita pelo Concílio das Lendas, cheia de ácaros e demais parasitas, veio ter com a Lenda transgressora. Senhora Lenda, disse-lhe a Lenda-Mor, moribunda: de onde tirastes essa Lenda, que nem a mais Lendária das Lendas, no caso eu, se pôs a conhecer? Não existe qualquer registro da historia da tua Lenda. A Lenda subjugada então lhe respondeu: Toda Lenda nasce de uma mentira bem contada, não se sabe por quem. Pelo menos a minha, tem autoria! A Lenda pagou caro pela rebeldia. Retornou para sua Lenda, condenada que foi a um século de mofo, um milênio de esquecimento e mais uma década de prestação de serviços à comunidade literária, espanando livros empoeirados no Museu das Lendas.

sábado, 19 de maio de 2012

PRÓXIMA ESTAÇÃO








Na próxima estação desembarcarei.
Sem passagem de volta,
Sem remorso, sem bagagem;
Só a fadiga da viagem.
Me hospedarei na casa amada.
Lá reunirei meus contos,
Meus desencantos.
Plantarei meus pés cansados,
Na calçada do futuro.
Levarei meus olhos pra
Tomar banho de cachoeira.
Aí, abrirei o peito a escorrer,
O que de resto me invade a alma.
Relembrarei meus sonhos,
Sonhados no impossível,
Desidratados e petrificados,
No passado que não me lembro.
Escreverei tudo que eu quiser,
Divagarei, rascunharei a mente.
Me internarei na rede a balançar,
Quem sabe a inspiração me toma a veia
E eu me torno poeta,
Antes de enrugar os ossos!!!

segunda-feira, 9 de abril de 2012

O FOGO DA ILHA

Conta a história que um pescador e sua rede, pescavam rio acima numa noite escura, quando de repente na outra margem, surgiu uma grande bola de fogo. Muito grande para ser um lampião e também não tinha forma de fogueira. O pescador ficou intrigado mas continuou jogando sua rede. Ainda não pescara quase nada, e mais agora com a claridade, só muita sorte, pensou ele enquanto puxava a rede cheia de gravetos. Nunca tinha visto coisa parecida. Aquele fogo sobre a água, sem ninguém por perto, lhe causou estranheza. Ficou parado por alguns minutos observando mais detidamente aquela bola reluzente e, como ela não se movia ele foi de forma sutil, jogando a rede em sua direção. Percebeu então que, na medida em que se aproximava, a bola se afastava. Agora parecia um pescador incomodado com sua presença. Mas o rio é de todos, pensou ele mais despreocupado. Parou por mais alguns minutos na esperança que o fogo se afastasse. Qual nada, o fogo mantinha a mesma distância de quando lhe aparecera. O pescador, cansado de jogar sua rede em vão, resolveu pescar de volta rio abaixo até o pé de gameleira onde deixara sua roupa. Enquanto descia o rio, percebeu que o fogo lhe seguia sempre à mesma distância.
Era um homem religioso, temente a Deus. Lembrou da história que seu pai lhe contara. Nela um canoeiro e sua canoa desaparecera naquelas águas misteriosamente. Nesse momento prometeu a si mesmo: rezaria um Pai Nosso e uma Ave Maria quando saísse da água. Subiu a ribanceira e já vestido, ajoelhou-se sobre a rede e começou a rezar olhando fixo para a bola de fogo, que diminuía à medida que a reza era rezada, até desaparecer por completo.
No caminho para casa emparelhou com seu compadre que vinha da novena e, como nunca lhe guardara segredos, contou-lhe do fogo, que lhe seguira rio acima, rio abaixo até a velha gameleira. De imediato, seu compadre relembrou com desdém uma historia antiga de uma fogueira que caminhava sobre a água e afugentava os pescadores desaparecendo com suas roupas. Dizia a lenda que o fogo surgia do meio das carnaubeiras como se morasse na ilha; ou que nascia no salgado e por isso era também conhecido como fogo do salgado; ou ainda, que também é chamado de fogo do cunhaú, por nascer no salgado do cunhaú.
Depois em casa antes de pegar no sono pensou na possibilidade de o fogo ter sido uma mensagem das pessoas que desaparecem nas águas do rio. Ficou um tempo sem pescar. Nem comentou do fogo com sua mulher. Com certeza iria contar para os meninos que provavelmente não iriam querer lhe acompanhar na pescaria quando mais crescidos, pois ainda eram pequenos para a fundura do rio.
Quando resolveu retomar a pescaria, convidou seu compadre, para fazer prova no caso de o fogo lhe aparecer novamente. Lá foram os dois rio acima atirando suas redes para todos os lados; nada do fogo. Não queria acreditar naquela aparição. Poderia ter sido mesmo um pescador brincalhão querendo lhe pregar uma peça. Nem deveria ter contado ao seu compadre. Era mais uma dessas histórias que nascem de um mal entendido que se espalha virando lenda.
Seu compadre blasfemou do fogo por toda pescaria naquela noite. Era história que os mais velhos contavam para assustar os filhos, dizia ele. Seu avô lhe contara que vira o fogo queimar sua roupa no galho da gameleira e depois a roupa estava lá, no mesmo lugar. O pescador, apesar de destemido, jamais duvidava do desconhecido. Ouviu calado a zombaria do compadre. Se fosse realmente o fogo da lenda, porque não apareceu aos dois? Porque o escolhera? Seria a alma do canoeiro querendo lhe passar algum recado? Pedir-lhe alguma reza? Doravante, sempre que viesse pescar ou passasse pelo rio, lhe rezaria um Pai Nosso e uma Ave Maria. Não lhe custava nada.
Passados alguns dias, certa noite voltou ao rio como sempre fazia. A noite estava escura, lua nova de breu. A água morna do calor do sol garantia uma pescaria livre de calafrios, causados pelo vento sobre a pele molhada. Deixara sua roupa no lugar de sempre no galho da gameleira e jogava sua rede despreocupado, quando de repente a tocha surge na sua frente. Nunca lhe tinha visto tão de perto, e cada vez mais perto, até ficar encandeado com seu brilho reluzente. Não teve medo. O fogo não lhe faria mal, no íntimo tinha certeza disto. Aquele fogo queria lhe dizer alguma coisa, só precisava entender sua mensagem. Fechou os olhos e permaneceu imóvel. Era naquele momento, o mais vulnerável dos homens. Foi então que se lembrou da reza. Postou as mãos sobre o peito e rezou. Quando terminou, abriu os olhos e a escuridão era total. A tocha havia chegado perto demais. Aprendera a não brincar com fogo. Desta vez, apesar da intimidade sugerida pelo fogo, não ia contar nada sobre o episódio. Passaria outro tempo sem pescar, assim evitaria outro possível encontro com ele. Meses depois, numa tarde de folga do roçado, o pescador remendava sua rede estendida no terreiro, sentado sobre o tornozelo; a mulher se aproxima por trás, põe as mãos nos seus ombros, lhe faz um cafuné nos cabelos enquanto olha suas mãos calejadas; não costumava lhe fazer esses dengos à luz do dia, principalmente no terreiro. O pescador estranhou os afagos da mulher e pensou: essa alma também está querendo reza.
-O que foi? Perguntou ele, carinhosamente rústico.
-Sonhei que o compadre morria assado na fogueira, junto com os peixes e você olhava sem nada dizer, desembuchou a mulher, sem rodeios.
O pescador sabia que seu compadre não acreditava em sonho, quanto mais na história do fogo. Não ia contar o sonho da mulher.
Como prometera a si mesmo, toda boca de noite, o pescador ia até a velha gameleira e rezava um Pai Nosso e uma Ave Maria em nome das almas presas nas águas do rio. Numa noite, rezava como de costume quando ouviu passos, era seu compadre que, após lhe acompanhar na reza, lhe contou de um sonho que tivera. Um homem lhe aparecia, sem rosto, todo molhado, pingando como se tivesse acabado de sair do rio; o homem lhe rogava que lançasse sua rede ao rio naquela noite, na confrontura da gameleira. Lá ele iria ter uma grande surpresa. E contou mais. Sua mulher também tivera o mesmo sonho, e depois ele ainda queimava na fogueira. O pescador então, revelou o sonho de sua mulher, o que fez seu compadre, lançar a rede para o fogo.
O local indicado, não era bom para peixe, o pescador sabia disso; era a travessia da gameleira, que dava para a estrada do outro lado. Ficou ali matutando até que lhe bateu um aperto no peito ao pensar que aquele homem, todo molhado e sem rosto, poderia ser o fogo da ilha atraindo seu compadre para o fundo do rio. Não disse nada. A essa altura de nada adiantaria tentar dissuadi-lo. Seu compadre desceu a ribanceira da gameleira com sua rede sobre os ombros, enquanto o pescador assistia a tudo sentado no barranco, afinal o sonho não era seu. Quando sumiu no ocaso o último clarão do sol, a tocha apareceu enfurecida como um raio, fazendo piruetas. O fogo fez um circulo em torno do homem, que perplexo deixava cair sua rede sobre os pés.
Da gameleira o pescador olhava encantado para aquela coisa inacreditável. Agora, estranhamente, já sentia afeto pelo fogo. Não se dispôs a entrar na água naquele momento. Apenas contemplava deslumbrado aquele grande círculo colorido. Salvaria seu compadre daquela enroscada. Descobrira uma maneira de afugentar o fogo. Era só rezar e ele desaparecia. Começou sua reza e, dessa vez, o fogo não lhe tomou conhecimento. E seu compadre ali, estático, no meio do círculo, sem lastimar. Hipnotizado. O círculo foi se fechando em torno do homem, até retomar sua forma lendária de uma bola. O homem e o fogo viraram uma coisa só, que se apagava lentamente enquanto afundava. Com a escuridão completa, o pescador tirou sua roupa, pendurou na gameleira e desceu o barranco na direção do homem, que na certa ainda estava paralisado com o susto que tomara. Gritou seu nome até cansar, só o silêncio do rio.
Seu compadre e sua rede desapareceram misteriosamente; tal qual o velho canoeiro da outra lenda. Agora ficava claro o sonho. Era a vingança do fogo em paga do descaso e do desdém. Não se faz zombaria com as coisas do outro mundo.
Naquela noite o homem não voltou para casa. O pescador, apesar de tudo, sempre nutriu uma profunda e inexplicável admiração pelo fogo. E até o fim da sua vida, rezou penitente para as almas dos que se foram, engolidos pelas águas.
Abraçada com a lenda, a velha gameleira de galhos tortos, virou lugar de preces e oferendas; parece guardar todos os segredos do rio, além da roupa rasgada dos pescadores.
Até hoje permanece o mistério do fogo da ilha, do salgado, do cunhaú.....
Pela alma do seu compadre, o pescador jurou de joelhos diante da velha gameleira, que jamais jogaria sua rede naquele rio, depois do pôr do sol!

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

VIDA DE PEDRA

Pedra miúda tinhosa
Fui pedra já de menino
Carregada de caçamba
Despejada no caminho
Arrancada do terreiro
Sem tempo de criar limo
Feito pedra de rebolo
Rolando sobre o destino
II
Deixei o alto de pedras
Pra bater em retirada
Uma banda ficou presa
A outra foi arrancada
No meu terreiro de pedras
Minh’alma ficou guardada
Metade de mim é pedra
Metade leva pedrada
III
Rolei pra cima e pra baixo
Rolei pra lá e pra cá
Rolei no frio da praia
Rolei pro frio passar
Rolei nos pés da capina
Rolei no sol a queimar
Rolei na lama da chuva
Rolei no jogo de bar
IV
Joguei pedra na guerrilha
Fui pedra de atirar
Me cobri de carrapichos
No serviço militar
Tive as unhas encravadas
Nas botinas de marchar
Acordei na enxurrada
Com o rio a me levar
V
Já me fiz em pedregulhos
Já me vi a soluçar
Esbarrei em muitas pedras
Só mesmo por esbarrar
Algumas me cativaram
Me pediram pra ficar
Como pedra não escuta
Não me pus a escutar
VI
Gravei o rumo do vento
Na certeza de voltar
Fiz o mapa do caminho
Costurei no patuá
Quem me viu desmilinguido
Não perde por esperar
Levo pedras de presente
Muita história pra contar
O terreiro me espera
Lá eu quero vadiar!!!

domingo, 29 de janeiro de 2012

FOGO AMIGO


“Quero te dizer
Velho Gurguri
Que o rio sem ti
Não tem alegria
A água que subia
Só pra te beijar
Agora vai passar
E não vai te ver!”


E logo eu, a te queimar no fim
Se já chorei por ti a todo pranto
Dono de ti, quem te adora tanto
Te ver em cinzas, fez cinza de mim
II
Te vi ali, a derreter em chamas
A escutar os versos que te fiz
Como a se arder, ardendo de feliz
Na labareda enquanto te derramas
III
O fogo amigo que te fez fogueira
Me doeu a noite, morna sem luar
Os olhos da Dona pôs-se a marejar
Olhos de menina, vida passageira
IV
Se te queimei foi pra te proteger
Do sol ardente que te consumia
Da chuva fina e da noite fria
Do abandono posto a me doer
V
Te li poema à luz de velas
Solenemente como ritual
Iluminados por um castiçal
Simbolicamente como sentinela
VI
Queimado, findo, ardendo de sede
Tua cinza leve se espalhou no vento
Como por encanto, coisa de momento
Invadiu a casa, beijou as paredes
VII
Do que te restou, joguei no rio
Tua cinza navega em liberdade
No meu peito és rio de saudade
Tomara não padeças calafrio!

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

40 DIAS NO PARAÍSO

Tirei uns quarenta dias
Pra sumir na capoeira
Comecei a bebedeira
Logo no dia seguinte
Amigos pra mais de vinte
Contentes com a surpresa
Me buscou em Fortaleza
Um amigo de primeira
Provocamos tremedeira
Nas garrafas da cidade
É ruma de amizade
Que todo dia me chama
Pra pescaria na lama
No rio da Manuela
No açude, na pinguela
Na Barrinha, no Preá
Na Croa Grande do Mar
Na terra do Jenipapo
Ou no Buraco do Sapo
Na baixa do Zacaria
Na fogueira da Bibia
Ou na Lagoa dos Bode
O Bagre sempre que pode
Me leva pra Macajuba
Pensando que me derruba
Com meia dúzia de cana
Logo cedo é caravana
O telefone tocando
O povo me convidando
Vambora queimar o dente
Tomara que eu agüente
E o fígado não se queixe
Bora pro caldo de peixe
Na lagoa do Bobó
Pra depois tirar o pó
La no Alto da Colina
Ainda tem a menina
O beijo na madrugada
Os carinhos de carrada
Cuidados que nem mereço
A todos eu agradeço
Pelo gesto de grandeza
A ruma de gentileza
Que estragaram comigo
Me despeço comovido
Um abraço do amigo
Numa rede em Fortaleza!