Conta a história que um pescador e sua rede, pescavam rio acima numa noite escura, quando de repente na outra margem, surgiu uma grande bola de fogo. Muito grande para ser um lampião e também não tinha forma de fogueira. O pescador ficou intrigado mas continuou jogando sua rede. Ainda não pescara quase nada, e mais agora com a claridade, só muita sorte, pensou ele enquanto puxava a rede cheia de gravetos. Nunca tinha visto coisa parecida. Aquele fogo sobre a água, sem ninguém por perto, lhe causou estranheza. Ficou parado por alguns minutos observando mais detidamente aquela bola reluzente e, como ela não se movia ele foi de forma sutil, jogando a rede em sua direção. Percebeu então que, na medida em que se aproximava, a bola se afastava. Agora parecia um pescador incomodado com sua presença. Mas o rio é de todos, pensou ele mais despreocupado. Parou por mais alguns minutos na esperança que o fogo se afastasse. Qual nada, o fogo mantinha a mesma distância de quando lhe aparecera. O pescador, cansado de jogar sua rede em vão, resolveu pescar de volta rio abaixo até o pé de gameleira onde deixara sua roupa. Enquanto descia o rio, percebeu que o fogo lhe seguia sempre à mesma distância.
Era um homem religioso, temente a Deus. Lembrou da história que seu pai lhe contara. Nela um canoeiro e sua canoa desaparecera naquelas águas misteriosamente. Nesse momento prometeu a si mesmo: rezaria um Pai Nosso e uma Ave Maria quando saísse da água. Subiu a ribanceira e já vestido, ajoelhou-se sobre a rede e começou a rezar olhando fixo para a bola de fogo, que diminuía à medida que a reza era rezada, até desaparecer por completo.
No caminho para casa emparelhou com seu compadre que vinha da novena e, como nunca lhe guardara segredos, contou-lhe do fogo, que lhe seguira rio acima, rio abaixo até a velha gameleira. De imediato, seu compadre relembrou com desdém uma historia antiga de uma fogueira que caminhava sobre a água e afugentava os pescadores desaparecendo com suas roupas. Dizia a lenda que o fogo surgia do meio das carnaubeiras como se morasse na ilha; ou que nascia no salgado e por isso era também conhecido como fogo do salgado; ou ainda, que também é chamado de fogo do cunhaú, por nascer no salgado do cunhaú.
Depois em casa antes de pegar no sono pensou na possibilidade de o fogo ter sido uma mensagem das pessoas que desaparecem nas águas do rio. Ficou um tempo sem pescar. Nem comentou do fogo com sua mulher. Com certeza iria contar para os meninos que provavelmente não iriam querer lhe acompanhar na pescaria quando mais crescidos, pois ainda eram pequenos para a fundura do rio.
Quando resolveu retomar a pescaria, convidou seu compadre, para fazer prova no caso de o fogo lhe aparecer novamente. Lá foram os dois rio acima atirando suas redes para todos os lados; nada do fogo. Não queria acreditar naquela aparição. Poderia ter sido mesmo um pescador brincalhão querendo lhe pregar uma peça. Nem deveria ter contado ao seu compadre. Era mais uma dessas histórias que nascem de um mal entendido que se espalha virando lenda.
Seu compadre blasfemou do fogo por toda pescaria naquela noite. Era história que os mais velhos contavam para assustar os filhos, dizia ele. Seu avô lhe contara que vira o fogo queimar sua roupa no galho da gameleira e depois a roupa estava lá, no mesmo lugar. O pescador, apesar de destemido, jamais duvidava do desconhecido. Ouviu calado a zombaria do compadre. Se fosse realmente o fogo da lenda, porque não apareceu aos dois? Porque o escolhera? Seria a alma do canoeiro querendo lhe passar algum recado? Pedir-lhe alguma reza? Doravante, sempre que viesse pescar ou passasse pelo rio, lhe rezaria um Pai Nosso e uma Ave Maria. Não lhe custava nada.
Passados alguns dias, certa noite voltou ao rio como sempre fazia. A noite estava escura, lua nova de breu. A água morna do calor do sol garantia uma pescaria livre de calafrios, causados pelo vento sobre a pele molhada. Deixara sua roupa no lugar de sempre no galho da gameleira e jogava sua rede despreocupado, quando de repente a tocha surge na sua frente. Nunca lhe tinha visto tão de perto, e cada vez mais perto, até ficar encandeado com seu brilho reluzente. Não teve medo. O fogo não lhe faria mal, no íntimo tinha certeza disto. Aquele fogo queria lhe dizer alguma coisa, só precisava entender sua mensagem. Fechou os olhos e permaneceu imóvel. Era naquele momento, o mais vulnerável dos homens. Foi então que se lembrou da reza. Postou as mãos sobre o peito e rezou. Quando terminou, abriu os olhos e a escuridão era total. A tocha havia chegado perto demais. Aprendera a não brincar com fogo. Desta vez, apesar da intimidade sugerida pelo fogo, não ia contar nada sobre o episódio. Passaria outro tempo sem pescar, assim evitaria outro possível encontro com ele. Meses depois, numa tarde de folga do roçado, o pescador remendava sua rede estendida no terreiro, sentado sobre o tornozelo; a mulher se aproxima por trás, põe as mãos nos seus ombros, lhe faz um cafuné nos cabelos enquanto olha suas mãos calejadas; não costumava lhe fazer esses dengos à luz do dia, principalmente no terreiro. O pescador estranhou os afagos da mulher e pensou: essa alma também está querendo reza.
-O que foi? Perguntou ele, carinhosamente rústico.
-Sonhei que o compadre morria assado na fogueira, junto com os peixes e você olhava sem nada dizer, desembuchou a mulher, sem rodeios.
O pescador sabia que seu compadre não acreditava em sonho, quanto mais na história do fogo. Não ia contar o sonho da mulher.
Como prometera a si mesmo, toda boca de noite, o pescador ia até a velha gameleira e rezava um Pai Nosso e uma Ave Maria em nome das almas presas nas águas do rio. Numa noite, rezava como de costume quando ouviu passos, era seu compadre que, após lhe acompanhar na reza, lhe contou de um sonho que tivera. Um homem lhe aparecia, sem rosto, todo molhado, pingando como se tivesse acabado de sair do rio; o homem lhe rogava que lançasse sua rede ao rio naquela noite, na confrontura da gameleira. Lá ele iria ter uma grande surpresa. E contou mais. Sua mulher também tivera o mesmo sonho, e depois ele ainda queimava na fogueira. O pescador então, revelou o sonho de sua mulher, o que fez seu compadre, lançar a rede para o fogo.
O local indicado, não era bom para peixe, o pescador sabia disso; era a travessia da gameleira, que dava para a estrada do outro lado. Ficou ali matutando até que lhe bateu um aperto no peito ao pensar que aquele homem, todo molhado e sem rosto, poderia ser o fogo da ilha atraindo seu compadre para o fundo do rio. Não disse nada. A essa altura de nada adiantaria tentar dissuadi-lo. Seu compadre desceu a ribanceira da gameleira com sua rede sobre os ombros, enquanto o pescador assistia a tudo sentado no barranco, afinal o sonho não era seu. Quando sumiu no ocaso o último clarão do sol, a tocha apareceu enfurecida como um raio, fazendo piruetas. O fogo fez um circulo em torno do homem, que perplexo deixava cair sua rede sobre os pés.
Da gameleira o pescador olhava encantado para aquela coisa inacreditável. Agora, estranhamente, já sentia afeto pelo fogo. Não se dispôs a entrar na água naquele momento. Apenas contemplava deslumbrado aquele grande círculo colorido. Salvaria seu compadre daquela enroscada. Descobrira uma maneira de afugentar o fogo. Era só rezar e ele desaparecia. Começou sua reza e, dessa vez, o fogo não lhe tomou conhecimento. E seu compadre ali, estático, no meio do círculo, sem lastimar. Hipnotizado. O círculo foi se fechando em torno do homem, até retomar sua forma lendária de uma bola. O homem e o fogo viraram uma coisa só, que se apagava lentamente enquanto afundava. Com a escuridão completa, o pescador tirou sua roupa, pendurou na gameleira e desceu o barranco na direção do homem, que na certa ainda estava paralisado com o susto que tomara. Gritou seu nome até cansar, só o silêncio do rio.
Seu compadre e sua rede desapareceram misteriosamente; tal qual o velho canoeiro da outra lenda. Agora ficava claro o sonho. Era a vingança do fogo em paga do descaso e do desdém. Não se faz zombaria com as coisas do outro mundo.
Naquela noite o homem não voltou para casa. O pescador, apesar de tudo, sempre nutriu uma profunda e inexplicável admiração pelo fogo. E até o fim da sua vida, rezou penitente para as almas dos que se foram, engolidos pelas águas.
Abraçada com a lenda, a velha gameleira de galhos tortos, virou lugar de preces e oferendas; parece guardar todos os segredos do rio, além da roupa rasgada dos pescadores.
Até hoje permanece o mistério do fogo da ilha, do salgado, do cunhaú.....
Pela alma do seu compadre, o pescador jurou de joelhos diante da velha gameleira, que jamais jogaria sua rede naquele rio, depois do pôr do sol!
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Parabéns pelo conto! Você retratou muito bem a lenda do Fogo da ilha. Já vou utilizá-lo na cartografia do CRAS. Bjo Grande!
ResponderExcluirum poeta versátil e que o mundo ouvirá falar muito de sua sagacidade, inspiração e inteligência.
ResponderExcluirParabéns belo contista.
Mana; Goretti.